18/02/14

Um buraco no teto



Esta é a última página do meu 3º caderno de registos  (nunca pensei conseguir completar um, quanto mais 3). E conta a história de um dos meus sítios favoritos.
Este é o meu sótão, que apesar de ter sido sempre um simples sótão, já foi também muitas outras coisas. Não só fisicamente, mas especialmente na minha imaginação.
Cheguei a esta casa com cinco anos acabados de fazer e menos dois dentes. Ao fundo do corredor, mesmo ao pé do meu quarto, havia um buraco, que era um círculo perfeito desenhado no teto. Uma espécie de entrada para o país das maravilhas, mas ao contrário.
Passado algum tempo, lá trouxeram um escadote instável que ligava o chão ao teto e que eu adorava por dois motivos: em primeiro lugar, só os mais destemidos, como eu, é que tinham a ousadia de o subir e, por outro, os bebés da família apelidados de “destruidores de brincadeiras” não podiam subir.
Muito tempo depois, o meu tio Vasco e outros senhores vieram montar uma linda escada em caracol toda trabalhada em ferro que rapidamente se transformou num escorrega.
A minha mãe, temendo o monopólio da rainha Beatriz, que já tinha conquistado todos os territórios possíveis e imaginários daquele país a que chamava “sótão”, veio estabelecer um tratado onde foram definidas as fronteiras do meu território (que diminuiu consideravelmente). No entanto, o meu desejo de expansão e de conquista de novos territórios teve sempre presente, embora com avanços e recuos, principalmente quando a mãe trazia novas tropas aleando-se à Tia Anita (aquela tia que adora limpezas, e pior! Deitar coisas fora).
Pois bem, contentei-me com o meu “cantinho” e transformei-o numa linda cidade da Barbie. Mais tarde numa escola onde obrigava os meus primos a pesados trabalhos, mesmo durante as férias de Verão. Durante os encontros de família foi também palco de festivais onde apresentávamos os nossos números ao resto da família.
Aos 14 anos, arrumei os brinquedos em caixas e o meu cantinho passou a ser um estúdio de dança. Foi aqui que tanto me esforcei nas espargata e rodas e me preparei para as competições de ginástica.
Fui crescendo e das brincadeiras de tardes infindáveis com os meus primos, passamos para as noites e primeiras diretas, com todos os meus amigos dentro de sacos de cama, em cima do telhado a ver as estrelas, quando a amizade era realmente a única coisa que importava e vivíamos os dias até ao limite.
Mais tarde, o meu "cantinho" foi transformado em biblioteca. Pousam nas suas prateleiras o meu crescimento. Desde a coleção da Anita ao “Clube das Amigas”, do  “Memorial do  Convento” aos livros de teorias de Jornalismo e História, entre tantos outros, empilhados no chão sem espaço na prateleira.
Hoje, é o meu sítio seguro. O sítio a que volto e me reencontro quando me julgo perdida . O sítio onde sei que cada coisa está exatamente no sítio onde deixei há não sei quantos anos atrás quando me mudei para Lisboa, como se o tempo tivesse parado no momento em que parti. Saber isso, acalma-me e reconforta-me a alma em dias mais turbulentos. Saber que ao chegar vou sentir o cheiro dos livros, ouvir a chuva a bater no telhado, que o gira-discos contínua sem tocar e que todas as tralhas da mãe vão estar espalhadas pelo chão à espera que alguém as arrume na dispensa.
Aninho-me no sofá a ler um bom livro e, por momentos, volto ao “país das maravilhas” e não dou pelo tempo passar. 
É esta a magia dos sótãos: nunca se dá pelo tempo passar.

com amor,
B