21/01/12

A cidade de olhos fechados

  Para eles o som de Lisboa é inconfundível. É como a vêm, como a admiram, como se orientam. Pelo som, pelo olfacto, pela trepidação,pelos tropeções nas barreiras físicas e pelos canos nas paredes. É esta Lisboa que se apresenta aos “olhos” de quem não a vê descrita pelos três reformados num pequeno pátio sem Santa Marta.

Um pátio em Santa Marta
É num pequeno pátio em santa Marta que Alfredo, Zé e Benjamin se encontram para jogar às cartas e ao dominó. Sem pressas, vão queimando os cartuxos de mais um dia de reformados na cidade de Lisboa, mais um dia bem passado à sombra de uma boa companhia.
O ambiente é agradável neste pátio que funciona como centro social da ACAPO (Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal). Flores, mesas, cadeiras, um bar e uma área de sombra preenchem este espaço fisicamente. Gargalhadas e conversas sobre futebol são o barulho de fundo. Num placard, que cobre uma parede inteira, pode-se ver anunciados vários eventos culturais, os quais não parecem ser apelativos o suficiente para cativar estes três senhores.
Alfredo e Benjamin têm em comum o facto de serem cegos e de terem escolhido Lisboa para viverem após terem cegado, mas diferem no sentimento que têm em relação à cidade.
Embora tenha vindo para Lisboa e resida na capital há 45 anos, Alfredo não gosta de viver na capital, apontando como argumento o facto de haver muita poluição. “Eu sou galo do campo e não galinha da cidade”. Alfredo fala da sua terra em Marco de Canavezes com nostalgia, mas não tenciona lá voltar ,“Só lá voltei uma vez porque não tenho coragem para enfrentar a população aldeã”.

Pode parecer contraditório devido à falta de acessibilidades  e à quantidade de barreiras arquitectónicas que se encontra Lisboa consequência do urbanismo, mas para estes três senhores nem se põe em causa : Lisboa é um bom refugio para quem não vê, há maior cooperação, inter –ajuda, mais alternativas e integração .
Que o diga Benjamim residente em Lisboa há 45 anos que não se imagina a viver em outro sítio qualquer.  Benjamim nasceu nos Açores e veio para Lisboa quando cegou para se reabilitar e começar a trabalhar. “Na aldeia ninguém nos passa cartão, aqui em Lisboa as pessoas estão mais habituadas aos deficientes porque existem muitos”.
Quanto a José só tem de atravessar o rio para chegar a casa (que fica no Barreiro) mas, e apesar de estar ali tão perto, vem para Lisboa todos os dias porque se sente menos discriminado e lá não tem “as coisas que tem em Lisboa”.

Insegurança e novas mentalidades
Tudo se transforma com o passar do tempo. Aos olhos de todos nós a cidade foi-se transformando. Desde novos prédios, a ruas, praças e estátuas.Para quem a sente, sente medo e insegurança nesta nova Lisboa, as ruas tornaram-se perigosas e as tardes de farra mais pequenas. Benjamim lembra com saudade os tempos em que saía à meia-noite do pátio do número 23 em Santa Marta e chegava à casa pela uma da manhã. Agora, todo o cuidado é pouco e o mais tardar às sete horas tem de estar a chegar a casa.
Alfredo relembra os tempos passados em que descia a bela Avenida da Liberdade com a bengala atrás das costas e desfrutava de um agradável passeio pela cidade. “Agora tenho de levar quatro bengalas se me quiser defender de tudo”.
Mas nem tudo é mau nesta cidade em transformação. A cidade transforma-se e com ela as mentalidades da sua gente principalmente da gente jovem. “Há 60 ou 70 anos era um cair de muro falar com uma pessoa cega assim frente a frente” , diz Benjamim. Deixando notar ainda o sotaque açoriano acrescenta ainda que os jovens lá da sua zona (portas de Benfica) até lhe vêm dar o braço sem quaisquer complicações, complexos ou insegurança. Já começa a ser natural.
Complexa é a palavra que os três escolheram para definir Lisboa. A explicação é óbvia com tanta gente, prédios e obstáculos, e, por outro lado, a concentração de oportunidades e alternativas e a normalidade. Para Benjamim que tanto amor tem pela capital, Lisboa é Portugal e não existe mais nada para além desta cidade.
Cidade pela qual tantos lutam para ser acessível a todos, mas que no fundo abriga, como um oásis, todos quanto a procuram por ser mais acessível; como os reformados do pátio de Santa Marta.
Ainda assim, estes jovens de ontem apostam nos jovens de hoje para a mudança que é precisa na cidade, quantoa tudo o que tenha que ver com política a opinião é apenas uma: “Falam muito, mas não fazem nada”.
Benjamim, José e Alfredo conhecem a cidade de olhos fechados e, embora não consigam aceder, sozinhos, a todos os sítiosonde gostam de estar,  para eles o único requisito que precisam para que um sítio seja agradável  é ter como companheiros as árvores e não betão armado. Parece difícil encontrar um sítio assim em Lisboa, mas depressa me enumeram uma série de locais: Belém, a estufa-fria e a zona da Expo.
Apesar de gostarem de todos estes sítios é no pátio do número 23 em Santa Marta onde mais se sentem refugiados longe dos olhares inoportunos da gente da cidade que vai mudando a pouco e pouco e tornando-se ainda mais aberta.
“O engraçado de Lisboa é que é difícil encontrar um lisboeta”, afirma Alfredo. Olhando para quem está no pátio, não é difícil de perceber esta afirmação porque embora todos tenham escolhido Lisboa para viver devido à sua condição, nenhum dos que ali se encontra nasceu na capital.
Para quem não vê a cidade sente-a,nem sempre da melhor forma principalmente quando se sente a dor no corpo quando se embate nos postes que aparecem onde não deviam de estar.

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